
- p-por favor, dois sorvetes. pra mim, algum sabor tipo xanax, valium... ou prozac. e um de pistache pra minha... ahn, mulher, claro! você acredita que eu quase disse "minha filha", quando queria dizer "minha mulher"? ela não é a minha filha, n-na verdade ela é filha da minha mulher. ex-filha da minha ex-mulher. ela foi adotada. e agora é minha mulher. pensando bem, não quero sorvete, vê alguma coisa aí pra minha asma. ah claro, isso é uma sorveteria, não uma farmácia... tem alguma nessa rua? logo ali na esquina? ao lado daquela coisa de neon que lembra a cabeça da cher? ah sim, eu estou vendo, muito obrigado. vamos, soon-yi, e pare de fazer acrobacias colegiais com a minha bengala.
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minha mãe me ensinou que julgar as pessoas é feio, mas é essa a idéia que tenho, na vida real e em quase todos seus filmes, desse tal de woody allen: ranzinza, propositalmente confuso, auto-indulgente em tempo integral e ofensivamente chato. sua obra é geralmente assim, permeada com excesso. excesso de diálogos (geralmente memoráveis, não nego), de personagens, de neuras, de sarcasmo, de nova york. é, naturalmente, impregnada de woody allen. talvez por essa razão, match point foi um sopro de frescor e descontração na carreira do diretor, assim como o posterior o sonho de cassandra, e até o bobinho scoop: seus personagens tinham poucos e complicadíssimos problemas, que ansiavam resolver - em vez de se entreter com eles. e, talvez também por isso, a novidade de seu último filme tenha me impressionado tanto: aos 73 anos, o espírito do velho ranzinza finalmente ficou leve.
repare no personagem de Javier Bardem: artista sensível, é amável e dono de uma sinceridade desconcertante, do tipo que nunca censura uma fala ou pensamento. uma pessoa tão bem resolvida que não desfaz contato nem com a ex-esposa de tendência suicida/homicida/qualquer-coisa-que-se-aproxime-cida; Juan Antonio é corpo estranho, arrisco dizer, não só na filmografia de Allen, mas também o tipo que você estranharia se topasse na vida real. Transparente e tranquilo, se apresenta exatamente do jeito que é. E é muito feliz assim, obrigado.
Rebeca Hall (a Vicky) é o que mais se aproxima da figura de Allen como conhecemos. mas curiosamente, a chata do filme é a (Cristina) Scarlett Johansson: embora a escrita da personagem seja real e fascinante, dona Johansson está ainda mais sonolenta que no ataque dos clones. e há a Penélope Cruz (Barcelona): você sabe o que acontece quando ela fala espanhol. ;)
considerando a experiência pessoal e intransferível, e optando por não minuciar os aspectos técnicos do filme até transformá-lo num manual de instruções, acho que Vicky Cristina Barcelona é cinema no topo por conseguir ser verdadeiro naquilo que prega, e sem -aparentemente- se esforçar. a vida é assim, uma discreta obra-prima em construção, incerta, inevitável, bela e simples. Como somos nós, não?
daquele Bergman que preciso rever, guardei a idéia de que mesmo uma vida de dor vale a pena, por um único momento genuíno de alegria que seja. A mim, parece que a filmografia chata de Allen valeu a penaa b c d etc. e, em especial esse último esforço, parece o respiro obrigatório depois de quatro décadas de neuroses novaiorquinas e ataques de asma; mas também não seria difícil imaginar que Allen pouco teve a ver com tudo isso, e que Vicky Cristina Barcelona resultou do ato espontâneo de duas horas de rolo celulóide irradiando luz própria.
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PS: um do motivos pra eu falar só agora do melhor filme que vi ano passado, é que em dezembro de 2008 eu nem tinha blog; o outro é que domingo é dia de oscar, aquele prêmio brega e inútil que todo mundo adora acompanhar (e ganhar), e que mais uma vez deixará de premiar o filme que mais merece, simplesmente porque não o colocou entre os indicados. rá!
PS2: já pensou se a penélope cruz ganha um prêmio? a M.I.A.? a kate winslet? não perco esse ano por nada ;)